quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

CORAÇÃO DE PAPEL

Hoje partiu o meu amigo. 
Quando eu o conheci, no carnaval de 2015, ele havia sido abandonado na roça, com a recomendação de soltá-lo bem longe para ele não achar o caminho de volta.
Foi a Nara quem interviu na conversa e disse que ele ficaria conosco e isso fez com que ele a escolhesse.
O levamos para a cidade para vacinar, vermifugar e descarrapatizar. Ele não sabia andar na lajota e no cimento, e ficava o dia todo deitado com medo de escorregar.
Nesse tempo ele tinha alma de vagabundo. Saía limpo e voltava enlameado, roubava ovos no galinheiro do vizinho, saía farejando cadelas no cio e voltava dias depois, abatido, magro e faminto.
Uma vez teve os pelos da cauda grudado na tinta fresca do corrimão e ficou pendurado pelo rabo para agonia e riso de todos.
Quando viemos morar na cidade de novo ele veio conosco e aos poucos entendeu que seu padrão tinha subido. Passou a olhar os vira-latas da rua com desdém, com desprezo e com uma altivez, como se ele mesmo não fosse um vira-latas, como se fosse um poodle ou um doberman. Por vezes ignorou cachorros que vinham ter com ele para brincar. Era como um burguês olhando a plebe. Quando mudamos para uma casa maior, com um quintal grande, seu orgulho cresceu mais ainda. Saía todos os dias para marcar o território em volta da casa com xixi, na mesma altivez e no mesmo orgulho, que faziam dele uma figura.
Em casa era um aposentado metódico. Comia nas horas certas, gostava de rotina e não comia se a comida estivesse quente ou fria demais. Só gostava de leite levemente adoçado e ração mesmo, só quando era o jeito. Era a comida de último caso, quando entendia que das sobras da cozinha não vinha mais nada. Não ficava na mesa incomodando durante a nossa refeição, mas aguardava na porta, pacientemente, calmamente o horário do término do almoço ou jantar e a hora de lavar os pratos, momento em que a gente tinha a impressão de que ele ia morrer de ansiedade. Uma vez saltitou tanto que bateu a cara na porta e saiu pulando e chorando. 
Nunca latia. Seus raros latidos eram dirigidos a carroças, num claro alerta de que ele agora era urbano. Nunca rosnava para nós. Nem no banho, nem na tosa, nem em momento algum.
Quando chovia se escondia na sua casa, até a última gota cair do céu. Odiava o som da Wap. Se emburrava quando a mangueira era ligada e mais ainda quando a mangueira era para ele.
Era de um respeito extremo, pedindo até para receber carinho. Entrava devagar, passo a passo, como em slow motion, até que o tocássemos. 
Era alegre, feliz, bem cuidado e sabia disso.
Era amigo. Muito amigo. Melhor que muitos que se dizem humanos. 
Me ensinou muito. Com ele aprendi que as pessoas que trocam o relacionamento humano pelo relacionamento com um animal, não devem ser apedrejadas, como muitas vezes eu fiz, mas devem ser compreendidas e respeitadas. Com ele aprendi que o seu espaço pessoal é sagrado e seu território precisa ser defendido. Com ele aprendi mais sobre respeito, lealdade e amizade.
Hoje, ao sair para marcar o território, foi atacado por dois cães de rua bem grandes, que fizeram nele uma ferida só, mas mortal. Tudo o que um profissional pode fazer por ele, foi feito, inclusive a tentativa de reanimá-lo. Mas ele não voltou mais. 
Dormiu tranquilo, sabendo que nesses quase dois anos de convivência conosco, nos fez muito felizes, dormiu sabendo que juntos nos divertimos muito e dormiu sabendo da lacuna que deixou na nossa casa. Obrigado amigão, Benji, Benjola, Vagabundo, Coração de Papel.
Você vem pra sempre conosco na nossa memória.
Hoje, você não estava mais na nossa varanda, mas agradecemos a Deus por ter nos permitido cuidar de você. Fica em paz!